Tuesday, August 27, 2013

Silêncio

É um estranho mundo, meu amigo, demasiado estranho para essa tua existência, fundamentada por uma ideia diferente, procuras os teus, os que partilham a tua ideia enquanto eles procuram diferenciar-se de tudo o que os rodeia até serem únicos e especiais. E sós, indefinidamente sós, são tão únicos e são tão especiais que por mais que falem, ninguém os compreende.
Tu não estás só, tens os teus, tens consciência (e eles não), às tantas o teu coração é esvaziado de significado e o deles não, porque não têm consciência. E esperam de ti o impossível, tens contigo o batimento cardíaco, pegam-te na mão como se fosses um messias por despertar, como se pudesses salva-los da desgraça que são, porque é de ti que vem o pulsar da vida. Mas não os consegues segurar, instantes há em que simplesmente, simplesmente, tens de descansar e fechar os olhos, tens também uma vida para esventrar o propósito.

E olham-te, depois, quase com rancor, como se fosses egoísta. Porque, de tempos a tempos, evidencias numa luz clara a tua escolha : tu. Aquilo que eles não têm.  Não podes permitir-te essa surdez e deixar de ouvir o som de uma folha quando cai num secreto lago, no silêncio pacífico do teu ser. 

Thursday, August 01, 2013

Cose as tuas asas

Cose as tuas asas, pequeno anjo, que pior que cair, é não tentar sentir o intenso azul do céu ou quão quente é o Sol. De que vale uma vida sem desejos e sem sonhos?
Cose as tuas asas, é possível, ver-te trespassares o abismo, é o meu sonho, sou um jovem velho Dédalo, pequeno anjo, não posso dar-te umas novas asas, sonhar é eternamente ser-se frágil, porque somos  efémeros, mas cose tuas asas que ainda és pequeno, ainda te vela o tempo por vir. Esta é a minha função, tentar que voes e que não tenhas medo do medo, pequeno anjo, voar é  viver a vida que te pertence.
Cose as tuas asas, pequeno anjo, que tens contigo a esperança de muitos homens. A tua falha não os preocupa, a tua desistência é mais corrosiva, porque se abandonares o sonho, quem é que voa por ti? Por isso, cose  as tuas asas, pequenino anjo, que trazes contigo o sonho e tenta voar. A esperança que depositam em ti ampara-te a queda, pequeno anjo, porque é preciso que voes, para mostrares o caminho até ao Sol. Se não voares nós ficamos sós, com o sonho quebrado a escorrer, inutilmente, por entre as mãos.
Por isso, cose as tuas asas, meu pequeno anjo, que eu sou Dédalo mas não sou Ícaro, não anseio voar, anseio que proves que sonhar torna a vida possível.


Tuesday, June 25, 2013

A carta - um pequeno conto (Parte II)


Abriu o jornal despreocupadamente. Quando uma presença feminina entrou na sala e se sentou calmamente no seu colo, sorriu como se todo o mundo não importasse ( porque, de facto, não importava).  Estava perfeitamente confortável , existencialmente cómodo na tranquilidade do excesso. 
Os olhos dela pousaram na notícia do jornal. O rosto contraído num choque momentâneo, na consciência de um qualquer horror que lhe trespassou pela mente. Os olhos dele seguiram os dela e um esgar de profundo terror tomou-lhe todo o ser. O corpo ficou preso ao vazio.
-Conheceste-a?
- Vagamente, apenas. – Mentiu, ele.
Tudo o resto ele não se lembra, perdeu qualquer consciência, tudo era um turbilhão confuso que o engolia enquanto nada se mexia. A imobilidade prendia-o. Tudo estava estático.  Ficou sentado durante muito tempo porque o tempo colapsou. Ouviu o telefone, reconheceu a voz. Ouviu o choro compulsivo. Ouviu bem as palavras – a culpa era dele, toda dele. Ele devia saber que a culpa era toda dele. Ela jamais conduziria com aquela percentagem de álcool no sangue.
Ah! Ele sabia. Ela era uma pessoa bastante aborrecida no dia-a-dia, sempre dentro das normas, movia-se sempre de forma perfeita. A única desmedida era o sorriso, só quando sorria é que parecia libertar-se da perfeição austera que se encontra no seguimento das regras cegamente.
Era sua culpa? Era mesmo?
O rosto contraiu-se num horror profundo e, parte dessa expressão, acompanhou-o, tal qual uma sombra negra que consome a luz, até ao fim. O sorriso dele foi indefinidamente, um sorriso fantasma, sem tempo definido.

Ela olhava-o ansiosamente. A expressão do rosto dele era de profundo choque.  Os olhos estavam preso às folhas de papel. Quando acabou, levantou-se e sentou-se a seu lado.
- Ainda não esta acabado! Falta algumas coisas sabes, reformular. Bem tu sabes. – Ela esperava expectante a opinião dele. Parecia que tinha visto um fantasma.
- É assim que acaba?
-É.
-Temos uma vida assim triste? – Perguntou.
-Não…-  Considerou aquela pergunta bastante estranha. – Porquê?
- É um final, bem. Triste. E duro. – Ele alivou o rosto. – Então, não reflecte a nossa vida?
Ela riu muito alto.
- Eu escrevo histórias. É como ganho a vida. – Ele era tão intencionalmente ingénuo. Recusava-se sempre a aceitar que o mundo era, por vezes, um lugar cruel.
- Ele, a personagem masculina. É mau, de má índole?
- Não. É uma pessoa desfasada do mundo, habituou-se a sobreviver por conta própria, manteve um mundo privado. Na sua vida sempre fora das normas, habituou-se, bem, a encontrar um espaço dele. – Parou e reflectiu. – Não, as intenções dele são honestamente boas, mas não se sincronizam com a realidade. E o resultado é catastrófico.
- E ela?
-Que tem ela?
- Porque é que morre? Não precisava de morrer. – Parou. –Ou precisava?
-Ela é uma pessoa comum.  As pessoas comuns não questionam o que é inquestionável porque procuram uma vida sem dificuldades, sem grandes exigências. As pessoas comuns são comuns porque seguem um modelo e é bem mais fácil seguir um do que criar um. A vida está no obstáculo, no excesso do limite para se saber qual é , exactamente, o limite.
Parou. Retomou, depois o pensamento.
- Só queria que as pessoas tomassem consciência que a morte é o reflexo da vida. E há vários tipos de morte – a dela é definitiva porque é metafórica. Na verdade, ela raramente viveu. Viver tem de valer a pena, tem de ser merecido, tens de equilibrar o dever e o querer, entrelaça-los e encontrar aí o teu ser. Em ti, não no mundo. Tens de defender a tua vida. A morte é sempre, misteriosamente, a melhor maneira de abraçar a vida.
Ele ponderou o que ela disse.
- Não gostei.
Ela sorriu. – Eu sei.
- Prefiro desenhar prédios.
Ela riu muito alto.

 – Eu sei.

A carta - um pequeno conto (Parte I)

“ Acordei com esta sensação  estranha de quem perdeu um sonho enquanto o sonhava e, no desenrolar desse paradoxo, o imenso sol que se fazia brilhar no espaço, não conseguia libertar a palavra anónima que estava enclausurada na garganta.  Precisava de saber o nome para me libertar dela.
Foi quando me lembrei de ti, naqueles dias de sol equilibrados termicamente. Equilibrados existencialmente.  Costumavas sorrir e todo o mundo se tornava suportável. Eu sei – sei bastante bem – foi já há muito tempo, há anos, literalmente, até. Depois de tanto tempo só agora é que, de facto, sei qual é a cor da tua ausência. Acredita, não é mais estranho – ou perturbador – para ti do que é para mim. Mas há uma verdade lógica  que se esconde neste aparente não sentido.
Por mais que , para ti, o meu comportamento seja sempre o comportamento de um egoísta arrogante e egocêntrico, senhor da sua própria vontade alheio às vontades circundantes, só não te quis oferecer o mundo porque não o tinha e o amor nunca foi uma promessa vazia. Tem sempre, a meu ver, uma fracção de honestidade cristalina , nunca pode ser uma palavra inócua.
Porque é que considerei por bem dizer-te, não sei exactamente.  Talvez a culpa e o arrependimento, quando chegam à consciência, se tornem em factos difíceis de sacudir da pele.
Quando reflecti, ponderei se não se relaciona sobre a minha independência ( arrogante, ainda me lembro da tua opinião) e da minha insistência em querer segurar a miséria do mundo. Queria torna-lo num lugar mais suportável, melhor, mais equilibrado. A ideia dominava todo o meu ser, ofereci o sangue, em instância ultima, para que a utopia se movesse um milímetro para mais perto da realidade.  Anulava-me , sabes, num momento último. Procurava construir um mundo que, no limiar da sua perfeição, eu não podia fazer parte. É este o tamanho do meu ideal, o sacrifício não me custa, é honesto e é verdadeiro. É a minha intenção.
Apercebi-me, porém, hoje, que falhei em tornar o teu mundo suportável. Tenho consciência absoluta que não me esforcei o suficiente e, para ti, não me esforcei de todo, é uma mesma coisa.  Lamento, profunda e honestamente, ter anulado o teu sorriso ainda que tenha sido por breves instantes, apenas.  Tive a minha legitimidade, é certo, as tuas acusações à minha pessoa passeavam-se entre o insulto grave , uma tentativa de me enquadrar num mundo que não era o meu e o absurdo que fica quando segues normas cegamente.  Mas , sinceramente, pouco me importa que erros cometeste : perdeste o teu sorriso sob o meu toque enquanto eu perdia qualquer coisa que já tinha perdido antes. Quando tomaste consciência da tua perda, a minha era já um fantasma disperso. Não me fez grande diferença porque nunca gostei de bússolas, estar perdido é a minha forma de orientação.
Não! Não julgues que procuro que me desculpes e, muito menos, que me perdoes. Os teus erros e os meus erros são equivalentes, às tantas, o amor apenas dissipou-se e , a seguir, cessou.  Queria apenas pronunciar o indizível para que nenhum som oblíquo nascesse desse espaço-tempo paralelo que é o “se”. Não gosto do “se” – é uma ilusão que entrelaças com a realidade sem qualquer hipótese de se prolongar. Sabes bem qual a minha posição em relação aos teus “ses”.
 Queria apenas pronunciar as palavras certas, cada uma no seu lugar – estas são tuas. Apercebi-me , simplesmente, que nunca me tinha despedido de ti. Por isso – adeus. Sem nenhum se.”

Puxou a tampa do portátil para baixo e fechou os olhos.  Há quanto tempo não lembrava  esta sensação de quente e frio simultâneos e dispersos que ele deixava como meio-ambiente. Era o seu perfume esta instabilidade em constante vertigem.
Por baixo da carta que lhe enviara, estavam duas frases de Pablo Neruda.  Ele e Neruda!  Nunca compreendeu o que é Neruda tinha de tão especial para ele – um poeta, há tantos! Nunca compreendeu os poemas de Neruda. Odiava profundamente Neruda, odiava-o agora ainda mais. Só o nome – NE-RÚ-DA – dava-lhe náuseas.  Já ele, ah! Ele compreendia Neruda , o ser dele era o poema. Oh, que contradição se instalou no seu peito!
Abriu o portátil, sem reler o e-mail, clicou no “responder”. Nenhuma palavra lhe saiu , o que fazia sentido, ele é que de vez em quando, publicava certos contos. Nunca entendeu. Não era o trabalho dele, era um hobbie. Um hobbie que lhe importava mais que o trabalho. Porque fazia ele isto?
Levantou-se para procurar refugio na garrafa de vodka.  Porque a tinha deixado. Porquê, mas porquê? Era tão – feliz! Que lhe iria dizer? Levou a garrafa aos lábios. Passado algum tempo, ganhou a coragem para lhe fazer a pergunta silenciosa que lhe morava debaixo da pele. A resposta dele foi relativamente rápida. Um Não seco seguido de uma série de explicações. Ele e a persistência irritante de que , se se compreender as razões, a dor atenua. A dela não atenuava em nada, era irracional, era inconsciente. Mas leu à mesma, numa esperança mórbida.
Não porque não tinha resultado. Não porque não a amava, amou-a ( a dureza da precisão de um passado que não se alongou no presente). Não porque ele gostava de Neruda ( esta, esta ela percebia no seu não-entendimento, era um porque que sintetizava tudo). Não porque amava outra. E era feliz.  Acordou com um nome anónimo na garganta, queria pronuncia-lo para se libertar. Era tudo.
Ele e a sua vontade de explicar tudo, de curar a dor através da brutalidade da consciência de que ela existe e que não vale a pena fugir. Ele e a insistência em aniquilar e extinguir todos os fantasmas. Contudo, enquanto o peito contraia, ela apercebia-se que a morte do fantasma dele, fez o dela renascer. A rejeição, a sensação de não chegar, de não ser suficiente, ter que enfrentar o mundo no dia a seguir. A ausência dele, ah amava-o ainda, não sabia não o amar. ( Amava-o, mesmo?). Lembrou-se do rosto dele, tão belo e tão distraído, todo o ser dele, composto e desajeitado, sempre alheado do resto da realidade, estando sempre consciente do que o circundava. De tudo, o que mais lhe doía, era a ligeira doçura presente nas entrelinhas dele. Ela era uma boa memoria que já nada lhe dizia. Precisava de respirar, olhou  a garrafa de vodka, já vazia. Ligou a uma amiga. Não foi suficiente.Precisava de respirar. O perfume do meio-ambiente era tóxico.


Wednesday, June 19, 2013

Porque

É uma leve injustiça cujo trago já conheces há tanto tempo que te não rouba qualquer bem-estar. Há uma vaidade existencial equilibrada que te vai orientando, nunca teus olhos procuram o que se esconde debaixo da terra, sabes bem que teu coração pertence ao mar. É uma leve injustiça, sorris, já há habito – e já foi pior. Uma pequena represália do tempo que é teu contemporâneo, é uma pequena injustiça, à qual sobrevives, que outra hipótese tens? Teus ouvidos seguem docemente o azul, esperas o juízo final, tens contas nenhumas a ajustar, foste homem enquanto o soubeste ser, a forma como aceitas o castigo consiste na não-punição.

E que importa o mundo e as suas mesquinhices e os seus assuntos aborrecidos? Teu coração pertence ao mar, teus ouvidos seguem o azul, teu pensamento procura a disciplina para que teu ser possa gozar com fartura não ser mais corpo opaco ao sabor de uma corrente qualquer.  Fechas os olhos e vês melhor, apagas a luz para que a verdadeira luz irrompa do vazio, sentes-te no mundo , garantes um lugar à força de existires tranquilamente contigo. Até sabes porque é complicada a tua razão para com o mundo, até sabes quais são as queixas, mas que importa? Sorris e reafirmas –  és feliz enquanto o mar te guardar o coração com ternura, enquanto o azul te iluminar o caminho. Tudo resto é irrelevante – é uma grande justiça que trazes contigo, quando manténs uma honesta espinha que jamais se dobra. Não está à venda o ser que é teu – e isso é justiça.

“Porque tu vais de mãos dadas com os perigos, e eles vão à sombra dos abirgos, Porque eles calculam mas tu não.”

Inspirado em Porque de Sophia de Mello Breyner.

Sunday, June 16, 2013

O nascimento da Sonoridade Azul

Há algo na tua voz que me faz sonhar um mundo melhor, onde a tua sonoridade não seja tão triste (porque não tem de ser tão triste). Tive, claro, as minhas guerras com o mundo, as desilusões de uma ideia que não conseguiu desabrochar. Mas mantive, acima de tudo, uma tensão comigo, entre o queria ser, o que era e o que desejava ser, o mundo, o mundo funcionava apenas como reflexo do meu próprio espírito. A guerra contra o mundo sempre foi uma batalha dentro de mim. Sobrevivi, como vês,  porque fechei os olhos para ouvir a minha própria voz, esquecida no turbilhão do ruído do mundo. Fechei os olhos para ver melhor o nascimento da cor e, encontrei nesse instante, o som de onde brotou todo o mundo. Há algo na tua voz que me lembra o meu ser, que ao defender uma perspectiva vitalista, se esqueceu do drama inerente a uma existência vital. É a tristeza da tua voz que me faz querer dar-te o Belo, porque é por sua mão que a realidade ganha uma nova vida, destinada a ser vivida por  um novo tempo.

Tiveste, claro, as tuas guerras, as tuas lutas contra um mundo que não te guarda lugar. Nada guarda lugar nada, nada dá lugar a nada, tudo é efémero, tudo anseia por algo que não sabe bem o que é.  E, há algo na tua voz, que me relembra o retorno ao uno, ao inicio, ao nascimento do tudo que é um pequeno e minúsculo detalhe. E isso, isso faz-me sonhar um mundo melhor onde uma onda de azul te inunde os olhos, demonstrando-te assim, que há sempre tempo se o tempo existir em ti. Como sempre existiu em mim, não sou um díspar fragmento mundano (e por isso, sou feliz).

Sunday, March 17, 2013

Não temos tempo para ouvir música


Não temos tempo, não temos tempo para nos sentarmos, quietos e calmos, a ouvir tranquilamente a melodia dar luz às trevas. Não temos tempo de ouvir a violência de uma trompa que rompe e se sobrepõe a tudo o resto. Não temos tempo para ouvir e ouvimos durante todo o dia, conversas vazias, o ruídos urbano. Ouvimos, ouvimos sem ouvir e propagamos a ideia de que ouvimos como se bastasse apenas uma orelha programada com certas características biológicas para ouvir. Não ouvimos, não temos tempo.
Nem nunca vamos ter, a efemeridade da vida humana inicia-se na efemeridade com que o homem se trata a si mesmo. A hierarquização das prioridades baseia-se na efemeridade, quase numa superficialidade, por isso não ouvimos, mas gostamos de música e ela está em toda a parte. Não ouvimos mas não sabemos viver sem musica, que mundo trágico seria esse , um mudo surdo!
Há sempre tempo para ouvir se nossa alma for isso, uma animação de movimento de tempo, de contraste, de jogos temporais. Musica é tempo – e, subitamente, não temos tempo para ela em todo o tempo que lhe dedicamos.
Há sempre tempo para ouvir quando é uma questão de amor, ouvimos contra vontade, ouvimos em resistência de salvaguarda de um eu que deixa de importar. Ouvimos porque não conseguimos não ouvir. E, então, ficamos quietos e calmos, a ouvir tranquilamente a melodia criar um espaço-tempo so dela onde o impera o tempo musical, finito na infinitude.

Wednesday, March 13, 2013

Apelo à Arte



Isto é bastante simples e peca, talvez, pela sua simplicidade. De facto, algumas coisas devem ser encaradas com uma crescente complexidade, à medida que outras perguntas se instalam teimosamente como a chuva miúda num dia de Sol. Perdoar-me-às, espero, a linearidade da minha tentativa de construção de um raciocínio, elaboro-o apenas enquanto homem que vive neste mundo, que é orientado por este mundo. Nada mais. Preocupa-me o desfasamento do simples, honestamente, preocupa-me: se desconstróis e esventras e complexificas o simples, onde encontras a origem? Se não houver uma pequena célula que evolui, onde está o Homem? É verdade – dizes-me, oiço-te na razão que te reveste o argumento – é este o meu trabalho, formei-me em pensamento, o meu treino é a problematização do mundo e, assim, eu melhor do que ninguém deveria saber a necessidade de compreender toda a densa rede que sustem os homens na sua sociedade, em perceber que não há nada que seja simples. Não há – certamente – nada que o homem não consiga complicar, não é o mesmo que dizer que não existe o simples. É óbvio que, se existe o complicado e o complexo e o denso, existem em confronto com os seus opostos . O simples existe, nem que seja numa insistência humana de o sonhar. Há que ter em atenção porque o faz.
Não, não. Não desconstruas mais essa doce simplicidade. Não questiones demasiado a beleza, deixa-a existir. Precisamos dela, somos homens, somos ser sofridos com a garantia que o sofrimento dura tanto tempo quanto a nossa efémera e pequena vida, a morte é tão maior que nós. Deixa-nos a beleza, o rasgar da luz nas paredes e no coração, deixa-nos ter essa fracção de felicidade de existência. A vida é algo que merece ser vivida pela beleza, esforças-te pela beleza, para a continuares a contemplar, para sentires qualquer coisa de alguma forma. Mesmo o horror – esse começo duro da consciência de existência- e o choque e o horrível que causam essa desagradável sensação de te desfazerem as entranhas, que te angustiam numa mudez esquisita em que te é permitido falar, não tens é palavras adequadas à experiência  são necessários (é assim que reconheces a beleza quando te deparas com ela).
Por isso, perdoa-me a linearidade e a persistência nessa mesma linearidade. Não é enquanto homem treinado para te falar sobre os problemas da sociedade, os confrontos de classes, a luta do poder pelo poder e a luta da memória e dos esquecidos e todos esses elementos que me preocupam o espírito (mas parece-me ser relativamente fácil ganhar a vida com eles, hipócrita ironia que se tende, por vezes, a instalar. Parece-me, parece-me). É enquanto homem absolutamente comum que te falo : precisamos de harmonia, da crença numa possibilidade de um Estado perfeito , se não procurarmos uma força invisível que imponha a ordem melódica no mundo, que das profundezas negras da Terra, seja capaz de tornar soalheiro um dia cinzento, porque continuamos aqui? Se não for por um momento de beleza em que a tua existência é tão bela quanto essa sensação de preenchimento que sentes quando vês o teu quadro preferido ou ouves aquela música que a tua alma esfomeada por um cheiro qualquer exigiu, para que é que existes?
Preocupa-me que destruas isto tudo sem teres grandes reservas nas consequências. Porque – ouve-me- tudo envelhece. Até a arte, se não a renovares, no sublime e no horrivel, envelhece e gasta-se.
E sem Arte, o que é Homem? 

Sunday, February 17, 2013

Carta a um Amigo Perdido


Já alguma vez pensaste na forma como o tempo te trespassa? Que o tempo passa, sabemos, intrinsecamente, sabemos, projectamos essa ideia de fim em cada instante. Esventramos cada alegria , sobrevivemos a cada dor, é a ideia do fim que sempre já sabemos. Mas, como, como passa o tempo? Sempre me pareceu que acalentavas a ilusão de que és tu que caminhas sobre ele, que o orienta, ah, como é uma ilusão.
Não me ouves, é certo, já não me ouves há já tanto tempo. Particularidades da vida, ínfimos instantes em que tudo se desagrega e nasce o novo dia, tão diferente e tão igual ao anterior. Vivemos ocupados, meu amigo, atarefados com o quotidiano a que somos impelidos a sobreviver em cada segundo. Queixamo-nos da crueldade alheia, da frieza do mundo e somos, insistentemente, parte dela, mais por pequenos incidentes, curiosos mal-entendidos do que por uma grande desavença. Podemos tentar depois recuperar esse trilho passado perdido, até podemos, eventualmente, recuperar de facto algo. Mas aquele momento de perda foi uma perda em si, nada a fazer, meu amigo, sempre preferi um pedaço, ainda que quase invisível, de dignidade do que uma total entrega ao desespero humano num descontrolo suspensivo. O que se perdeu está perdido.
Foi assim que o tempo nos prespassou, uma pequena desavença sem discussão, apenas a vida a actuar sobre nós, a distância daquilo que desfoca e, o que havia de comum, ou deixa de importar ou desvanece. Fomos amigos, éramos amigos, que diferença perpetua aqui? Seja o que for, já não o somos e nem sequer houve uma discussão, passaram os anos, segui uma vida, seguiste nenhuma e duvido que tenhas essa consciência. Tanto tempo já que não me ouves, fomos os dois jovens, tinhas toda a potência da juventude quando o teu corpo era tão jovem quanto a tua mente, quanto a tua aspiração de rebelde liberdade mas, que farás tu, quando o teu corpo envelhecer e te sobrar apenas essa sublime ideia ilusória?
Perguntaram-me porque escrevi o livro, sobre o que escrevi o livro. A ideia surgiu-me quando passei pelo sitio onde costumávamos beber à noite, jovens a tentar que o mundo lhes prestasse a devida atenção. Passei la com minha mulher, pelo mesmo sitio, estavam lá jovens, como tu e eu uma vez fomos, mas um qualquer desencanto ambientava aquele lugar. Tudo estava com aspecto de abandono, podre e velho, gasto e sujo, talvez tenha ficado demasiado tempo sem ir lá, talvez tenha sido de meus olhos. Foi lá que fui tão jovem quanto a minha juventude; agora, tenho apenas a juventude que prevê e evita a morte, a vida simples de um homem comum que vive o melhor que pode, o melhor que sabe. Ia jurar que te vi lá, o rosto jovem cheio de rugas,os gestos juvenis pesados da idade. Foi assim que me lembrei do livro, mais um da minha lista, foi isso que fiz com a inutilidade da minha juventude com a qual mantenho um intenso carinho. Que fizeste tu? Perguntei-me, perguntei-me… Já perdemos o contacto há tanto tempo que apenas escrevi o livro. Sobre ti, sobre mim, sobre a juventude. Sobre a morte. Foi um sucesso ou, pelo menos, dizem que foi, deram-me os parabéns, dizem que gostaram, palavras vãs (e isto é um grande eufemismo. )
Já alguma vez pensaste em como o tempo passou por nós? E o que fizemos com isso? Éramos amigos, julgo que seja o tempo correcto, éramos e a vida, essa misteriosa incógnita interferiu, somos hoje dois desconhecidos. As pessoas – esses animais a fingirem ser civilizados – dizem-me que sou dramático, que penso demais, que me entristeço demais. Para mim, porém, há uma infinita tristeza nisto, a mudança de um quadro, lembra-me um filme com um inicio maravilhoso e contagiante na felicidade que propaga e que, de forma e lógica e cheia de sentido, nem sequer termina mal – termina como termina a vida, somos todos homens e ser homem é ser falível.
Quis te enviar esta carta, honestamente, pouco me importa se a lês, apenas quis escrever-te, a ti, ao meu amigo de juventude que deixei exactamente no mesmo ponto em que o conheci. Quando decidi abraçar a responsabilidade de viver sabendo, inconscientemente, que dificilmente terias a mesma ideia. E porque éramos amigos, de alguma forma, se-lo-emos sempre.
É assim que o tempo passa por mim, é esse o seu como.

Tuesday, January 22, 2013

Grunge


Uma certa tranquilidade já se entranhou de tal modo na pele dele que ouve o silêncio profundo da noite em cada ruído clandestino.  Ligou o rádio como quem se prepara para abraçar uma qualquer estranheza da existência e a música invadiu-lhe o ouvido. Havias de gostar dessa música, ou secalhar gostavas , ele é que já não se lembra, perdeu-te no instante preciso em que seguiu um outro trilho. E nada ficou senão a memória de um quotidiano que perdeu até o sentido de não ter sentido.
Lembrou aquela noite como se guardasse uma antiga saudade de querer ser um outro eu, se foi ele que se sentou, contigo, naquelas escadas alheias, é irrelavante porque já o não é há demasiado tempo. Toda a juventude, toda a rebeldia, toda a ilusória liberdade gasta num esgar temporal ; todo o teu ser gasto naquela noite, o apogeu do amor coincidiu com o declínio. Ele sabe, pergunta-se se o sabes também, tentaram os dois viver só daquela noite, repeti-la, orientar a vida nessa frágil direcção. Tinham um atraso que não conseguiram diminuir e a referência, estava ela propria, consumida pela ansiedade de se sincronizar no tempo certo.
Havias de gostar desta música,  consegue ouvi-la com nítida clareza na memória que tem daquela noite; se houve alturas em que te amou com toda a força da existência, foi aí.  O mundo parecia poder tornar-se perfeito porque ele estava profundamente desfasado de tudo que te descontextualizasse.
Havias de gostar desta música, pertence a uma geração que se colapsou no mesmo ponto que surgiu. Ao expelir os demónios, perdeu-se com eles.E ele pertencia à geração seguinte. Deu ao silêncio uma cor musical mas gastou o amor naquela mesma noite e acordou na manhã seguinte do tempo por vir.