“ Acordei com esta sensação
estranha de quem perdeu um sonho enquanto o sonhava e, no desenrolar
desse paradoxo, o imenso sol que se fazia brilhar no espaço, não conseguia
libertar a palavra anónima que estava enclausurada na garganta. Precisava de saber o nome para me libertar
dela.
Foi quando me lembrei de ti, naqueles dias de sol
equilibrados termicamente. Equilibrados existencialmente. Costumavas sorrir e todo o mundo se tornava
suportável. Eu sei – sei bastante bem – foi já há muito tempo, há anos, literalmente,
até. Depois de tanto tempo só agora é que, de facto, sei qual é a cor da tua
ausência. Acredita, não é mais estranho – ou perturbador – para ti do que é
para mim. Mas há uma verdade lógica que
se esconde neste aparente não sentido.
Por mais que , para ti, o meu comportamento seja sempre o
comportamento de um egoísta arrogante e egocêntrico, senhor da sua própria
vontade alheio às vontades circundantes, só não te quis oferecer o mundo porque
não o tinha e o amor nunca foi uma promessa vazia. Tem sempre, a meu ver, uma
fracção de honestidade cristalina , nunca pode ser uma palavra inócua.
Porque é que considerei por bem dizer-te, não sei
exactamente. Talvez a culpa e o
arrependimento, quando chegam à consciência, se tornem em factos difíceis de
sacudir da pele.
Quando reflecti, ponderei se não se relaciona sobre a minha independência
( arrogante, ainda me lembro da tua opinião) e da minha insistência em querer
segurar a miséria do mundo. Queria torna-lo num lugar mais suportável, melhor,
mais equilibrado. A ideia dominava todo o meu ser, ofereci o sangue, em
instância ultima, para que a utopia se movesse um milímetro para mais perto da
realidade. Anulava-me , sabes, num
momento último. Procurava construir um mundo que, no limiar da sua perfeição,
eu não podia fazer parte. É este o tamanho do meu ideal, o sacrifício não me
custa, é honesto e é verdadeiro. É a minha intenção.
Apercebi-me, porém, hoje, que falhei em tornar o teu mundo
suportável. Tenho consciência absoluta que não me esforcei o suficiente e, para
ti, não me esforcei de todo, é uma mesma coisa. Lamento, profunda e honestamente, ter anulado
o teu sorriso ainda que tenha sido por breves instantes, apenas. Tive a minha legitimidade, é certo, as tuas
acusações à minha pessoa passeavam-se entre o insulto grave , uma tentativa de
me enquadrar num mundo que não era o meu e o absurdo que fica quando segues
normas cegamente. Mas , sinceramente,
pouco me importa que erros cometeste : perdeste o teu sorriso sob o meu toque
enquanto eu perdia qualquer coisa que já tinha perdido antes. Quando tomaste
consciência da tua perda, a minha era já um fantasma disperso. Não me fez
grande diferença porque nunca gostei de bússolas, estar perdido é a minha forma
de orientação.
Não! Não julgues que procuro que me desculpes e, muito
menos, que me perdoes. Os teus erros e os meus erros são equivalentes, às
tantas, o amor apenas dissipou-se e , a seguir, cessou. Queria apenas pronunciar o indizível para que
nenhum som oblíquo nascesse desse espaço-tempo paralelo que é o “se”. Não gosto
do “se” – é uma ilusão que entrelaças com a realidade sem qualquer hipótese de
se prolongar. Sabes bem qual a minha posição em relação aos teus “ses”.
Queria apenas
pronunciar as palavras certas, cada uma no seu lugar – estas são tuas. Apercebi-me
, simplesmente, que nunca me tinha despedido de ti. Por isso – adeus. Sem
nenhum se.”
Puxou a tampa do portátil para baixo e fechou os olhos. Há quanto tempo não lembrava esta sensação de quente e frio simultâneos e
dispersos que ele deixava como meio-ambiente. Era o seu perfume esta
instabilidade em constante vertigem.
Por baixo da carta que lhe enviara, estavam duas frases de
Pablo Neruda. Ele e Neruda! Nunca compreendeu o que é Neruda tinha de tão
especial para ele – um poeta, há tantos! Nunca compreendeu os poemas de Neruda.
Odiava profundamente Neruda, odiava-o agora ainda mais. Só o nome – NE-RÚ-DA –
dava-lhe náuseas. Já ele, ah! Ele
compreendia Neruda , o ser dele era o poema. Oh, que contradição se instalou no
seu peito!
Abriu o portátil, sem reler o e-mail, clicou no “responder”.
Nenhuma palavra lhe saiu , o que fazia sentido, ele é que de vez em quando,
publicava certos contos. Nunca entendeu. Não era o trabalho dele, era um
hobbie. Um hobbie que lhe importava mais que o trabalho. Porque fazia ele isto?
Levantou-se para procurar refugio na garrafa de vodka. Porque a tinha deixado. Porquê, mas porquê?
Era tão – feliz! Que lhe iria dizer? Levou a garrafa aos lábios. Passado algum
tempo, ganhou a coragem para lhe fazer a pergunta silenciosa que lhe morava
debaixo da pele. A resposta dele foi relativamente rápida. Um Não seco seguido de uma série de
explicações. Ele e a persistência irritante de que , se se compreender as
razões, a dor atenua. A dela não atenuava em nada, era irracional, era
inconsciente. Mas leu à mesma, numa esperança mórbida.
Não porque não tinha resultado. Não porque não a amava,
amou-a ( a dureza da precisão de um passado que não se alongou no presente).
Não porque ele gostava de Neruda ( esta, esta ela percebia no seu
não-entendimento, era um porque que sintetizava tudo). Não porque amava outra.
E era feliz. Acordou com um nome anónimo
na garganta, queria pronuncia-lo para se libertar. Era tudo.
Ele e a sua vontade de explicar tudo, de curar a dor através
da brutalidade da consciência de que ela existe e que não vale a pena fugir.
Ele e a insistência em aniquilar e extinguir todos os fantasmas. Contudo,
enquanto o peito contraia, ela apercebia-se que a morte do fantasma dele, fez o
dela renascer. A rejeição, a sensação de não chegar, de não ser suficiente, ter
que enfrentar o mundo no dia a seguir. A ausência dele, ah amava-o ainda, não
sabia não o amar. ( Amava-o, mesmo?). Lembrou-se do rosto dele, tão belo e tão
distraído, todo o ser dele, composto e desajeitado, sempre alheado do resto da
realidade, estando sempre consciente do que o circundava. De tudo, o que mais
lhe doía, era a ligeira doçura presente nas entrelinhas dele. Ela era uma boa
memoria que já nada lhe dizia. Precisava de respirar, olhou a garrafa de vodka, já vazia. Ligou a uma
amiga. Não foi suficiente.Precisava de respirar. O perfume do meio-ambiente era
tóxico.