Já alguma vez pensaste na forma como o tempo te trespassa? Que
o tempo passa, sabemos, intrinsecamente, sabemos, projectamos essa ideia de fim
em cada instante. Esventramos cada alegria , sobrevivemos a cada dor, é a ideia
do fim que sempre já sabemos. Mas, como, como passa o tempo? Sempre me pareceu
que acalentavas a ilusão de que és tu que caminhas sobre ele, que o orienta,
ah, como é uma ilusão.
Não me ouves, é certo, já não me ouves há já tanto tempo. Particularidades
da vida, ínfimos instantes em que tudo se desagrega e nasce o novo dia, tão
diferente e tão igual ao anterior. Vivemos ocupados, meu amigo, atarefados com
o quotidiano a que somos impelidos a sobreviver em cada segundo. Queixamo-nos
da crueldade alheia, da frieza do mundo e somos, insistentemente, parte dela,
mais por pequenos incidentes, curiosos mal-entendidos do que por uma grande
desavença. Podemos tentar depois recuperar esse trilho passado perdido, até
podemos, eventualmente, recuperar de facto algo. Mas aquele momento de perda
foi uma perda em si, nada a fazer, meu amigo, sempre preferi um pedaço, ainda
que quase invisível, de dignidade do que uma total entrega ao desespero humano
num descontrolo suspensivo. O que se perdeu está perdido.
Foi assim que o tempo nos prespassou, uma pequena desavença
sem discussão, apenas a vida a actuar sobre nós, a distância daquilo que
desfoca e, o que havia de comum, ou deixa de importar ou desvanece. Fomos
amigos, éramos amigos, que diferença perpetua aqui? Seja o que for, já não o
somos e nem sequer houve uma discussão, passaram os anos, segui uma vida,
seguiste nenhuma e duvido que tenhas essa consciência. Tanto tempo já que não me
ouves, fomos os dois jovens, tinhas toda a potência da juventude quando o teu
corpo era tão jovem quanto a tua mente, quanto a tua aspiração de rebelde
liberdade mas, que farás tu, quando o teu corpo envelhecer e te sobrar apenas
essa sublime ideia ilusória?
Perguntaram-me porque escrevi o livro, sobre o que escrevi o
livro. A ideia surgiu-me quando passei pelo sitio onde costumávamos beber à
noite, jovens a tentar que o mundo lhes prestasse a devida atenção. Passei la
com minha mulher, pelo mesmo sitio, estavam lá jovens, como tu e eu uma vez
fomos, mas um qualquer desencanto ambientava aquele lugar. Tudo estava com
aspecto de abandono, podre e velho, gasto e sujo, talvez tenha ficado demasiado
tempo sem ir lá, talvez tenha sido de meus olhos. Foi lá que fui tão jovem
quanto a minha juventude; agora, tenho apenas a juventude que prevê e evita a
morte, a vida simples de um homem comum que vive o melhor que pode, o melhor
que sabe. Ia jurar que te vi lá, o rosto jovem cheio de rugas,os gestos juvenis
pesados da idade. Foi assim que me lembrei do livro, mais um da minha lista,
foi isso que fiz com a inutilidade da minha juventude com a qual mantenho um
intenso carinho. Que fizeste tu? Perguntei-me, perguntei-me… Já perdemos o
contacto há tanto tempo que apenas escrevi o livro. Sobre ti, sobre mim, sobre
a juventude. Sobre a morte. Foi um sucesso ou, pelo menos, dizem que foi,
deram-me os parabéns, dizem que gostaram, palavras vãs (e isto é um grande
eufemismo. )
Já alguma vez pensaste em como o tempo passou por nós? E o
que fizemos com isso? Éramos amigos, julgo que seja o tempo correcto, éramos e
a vida, essa misteriosa incógnita interferiu, somos hoje dois desconhecidos. As
pessoas – esses animais a fingirem ser civilizados – dizem-me que sou dramático,
que penso demais, que me entristeço demais. Para mim, porém, há uma infinita
tristeza nisto, a mudança de um quadro, lembra-me um filme com um inicio
maravilhoso e contagiante na felicidade que propaga e que, de forma e lógica e
cheia de sentido, nem sequer termina mal – termina como termina a vida, somos
todos homens e ser homem é ser falível.
Quis te enviar esta carta, honestamente, pouco me importa se
a lês, apenas quis escrever-te, a ti, ao meu amigo de juventude que deixei
exactamente no mesmo ponto em que o conheci. Quando decidi abraçar a
responsabilidade de viver sabendo, inconscientemente, que dificilmente terias a
mesma ideia. E porque éramos amigos, de alguma forma, se-lo-emos sempre.
É assim que o tempo passa por mim, é esse o seu como.
No comments:
Post a Comment