Sunday, January 31, 2010

Reminiscência

Vá diz-lhe. A razao pela qual o torturas, assim. Amavelmente. Porque ele passou na tua rua e não te viu na janela e lembrou-se quando o esperavas. Pateticamente fiel á espera de uma fracção de felicidade. Ele passou na tua rua e tu não estavas la. Eras mesmo irresponsavelmente leal ao ponto de esperares por ele , todos os segundos de todos os dias?
Responde-lhe. Ele não te pergunta em palavras , nem que seja uma vez comunica na língua dele. Não esperes ouvir a pergunta . Porque ele passou na tua rua e lembrou-se de quanto lhe doeu esse abismo que não soubeste vencer. O abismo era ele, o mesmo ele que esperavas todos os dias. Incansavelmente. Só para o veres por um instante, amar-lhe o rasto da sombra. Como é que amas algo que não sabes o que é, que não compreendes o que é?
Vá, chora-o. Ele morreu. E nem sequer te deste conta, como é que podias esperar por ele todos os dias?
Mas esperaste. Como ninguém te disse que ele morreu, desististe de espera-lo. O mundo obrigou-te.
Mas responde-lhe. Não o tortures amavelmente. Se desejares aniquilá-lo ele sabe reagir.
Diz-lhe que nem quando o deste como perdido desististe dele, mantiveste-te fiel a ti, leal a ele. Fala-lhe da tua integridade.
Porque ele passou na tua rua, por baixo da tua janela. Sente a tua falta, às vezes gostava de não ter morrido. Ou de ter acreditado em ti. Mas nunca soubeste quem ele era, como podia ter fechado os olhos a isso?
Vá diz-lhe. Honestamente. Quere-lo de volta ou ganhaste consciência da estupidez patética que cometias todos os dias quando o esperavas nervosamente?Porque o amor é isso. Só isso.

Tuesday, January 26, 2010

Persistência

Os anos começam a pesar-me nos ombros. Mas talvez esteja a envelhecer de uma forma jovem. Talvez não me tenha esquecido daquilo que gosto, daquilo que sou. Inevitavelmente, “sou o que perdi”. Continuo a ter uma atitude quase infantil. Perdi a criança dentro de mim e isso resume tudo o que sou.
A idade reflecte-se no espelho como uma necessidade urgente de escolha. E já me decidi, sim. Sei perfeitamente quem não vou ser. As mentiras que não vou gastar tempo a imaginar. A ilusão que não me proponho a erguer.
Lamento pela minha dura resistência. Conservo a minha jovialidade cuidadosamente, tenho dificuldade em aceitar um fim. Lamento pela minha insistência naquilo que gostava de ser e não do que o mundo gostava de me tornar. E lamento que o meu lamento seja uma ironia crua e arrojada que a realidade circundante nunca vai descodificar.
Os anos começam a pesar-me os ombros. Deixo-os encostarem-se melancolicamente na cadeira. Estou vivo. Envelheço porque estou vivo. E não existe nada melhor do que todas as oportunidades recatadamente escondidas nessa aparente banal palavra.Viver.

Wednesday, January 20, 2010

Crueldade

Ele não podia faze-lo. Não chores, não que não te amasse. Que não se importasse contigo. Simplesmente, não podia faze-lo. Por favor, pára com esse sofrimento que evoca a mais funda compaixão. Para de chorar, o mundo às vezes é apenas um sitio cru e frio .
Ele não podia faze-lo.Ah! Na altura teria vendido a alma ao diabo para ficar contigo e com essa tua realidade. Bonita e efémera. Suave e medianamente profunda. Teria dado a alma ao diabo, sem nada em troca, só para ser feliz contigo. Mas até o diabo se riu desse sonho momentâneo dele. Porque ele não podia faze-lo, a alma dele está protegida pelo amor supremo que dedicou a algo maior , muito maior que ele. Maior que qualquer Deus.
Por isso, não chores. Ele não podia, não era opção. Foi a maior ilusão que já viste, que já sentiste, que já ouviste. Ele. A sua beleza exótica e ferida. Porque sabes que ele sofria, só querias acarinhar-lhe as cicatrizes, coser-lhe as feridas. E ele sabia disso. Mas ele não podia faze-lo, curar-se. Queriam-no assim para a guerra , marcado. Para ter pelo que lutar por: o direito de existir sem correntes invisíveis e tortuosas.
Ele não podia faze-lo. Deus sabe que teria dado tudo por poder ficar, por manter esse sonho que tinham os dois. Mas agora é já demasiado tarde, conquistou a sua liberdade na guerra, trouxe mais marcas, mais cicatrizes, mais pesadelos vazios. E nada do que possas fazer o cura. A tua simples existência piora-o.
Por favor, não chores. Ele amou-te, simplesmente não podia faze-lo. Ele já não é ele.
O mundo ás vezes é apenas um sitio cru e frio.

Saturday, January 16, 2010

A Rua

A solução morava naquela rua gasta e velha. Não foi surpresa nenhuma para ele, sempre sonhou fugir lá, encontrar-se lá. Morrer lá. Naquela rua gasta e velha.
E todos os dias no comboio ouvia o inconsciente insatisfeito com a estabilidade moderada conquistada, com a vida azul que o consciente responsável realista omitia. E olhava da janela e via aquela rua, gasta e velha. Escondia algo especial. Sabia-o. Senti-a o. Mas não via nada de extraordinário, não ouvia nada de extraordinário e seguia com a sua vida convencionalmente normal.
Um dia perdeu-se perto daquela rua. Começou a sentir uma tranquilidade boa e esquisita, um frenesim que o levava ao êxtase calmamente. Não havia nada de errado naquela sensação exótica, no som que ouvia. Mas encontrou-se e a melodia morreu.
Nunca mais foi o mesmo. Decidiu-se por experimentar a voz do inconsciente (porque não?). Vagueou horas fantasmas ate que encontrou aquela rua. Gasta e velha.A solução morava naquela rua e ele tinha sido o escolhido. Desistiu de resistir ao chamamento.
Naquela rua gasta e velha morava a única hipótese de futuro que o mundo tinha. Quem a não viu ou rejeitou morrerá triste e jovem. Porque a solução mora la, escondida na aparência gasta e velha de um prédio flexível que resistiu ao seu próprio passado.

Tuesday, January 12, 2010

Memória

Houve um dia em que ele regressou para ti porque foi o que aprendeu a fazer. Para se sentir feliz e cheio. Ver-te, simples na tua divina beleza. Mas ele, nesse dia, não te procurou, queria apenas a memória fresca , doce e aromática que tinha tua. No dia em que ele regressou porque se automatizou morreste.
Foi nesse dia que desistiu de ti, desistiu dele próprio. Foi o fim, o principio de um longo e doloroso fim. Arrastado no tempo de uma forma cruel e fria. E todas as vezes que ele regressou depois desse dia serviram para negar que o tinham corrompido, que o tinham vencido porque lhe esgotaram e esvaziaram a mente. Ele amava-te irracionalmente e foi uma injustiça demasiado crua e frívola o que lhe fizeram.
Mas naquele dia tu morreste e ele não sabe ressuscitar mortos. Iniciou-se o fim, passaste a ser uma das melhores memorias vivas dele. E ele amava-te tanto! Fizeram-no esquecer-se disso, rasgaram-lhe e quebraram-lhe a mente. E, quando finalmente regressou verdadeiramente para ti, já era demasiado tarde. Já tinhas morrido, já não passavas de uma leve e desfocada memoria.
Porque houve um dia em que ele começou a morrer de mansinho e ninguém viu. E tu estavas demasiado longe dele para o guardares e acarinhares.

Thursday, January 07, 2010

Inevitavel

Ele promete que se vai esforçar por endireitar as coisas. Não consegue evitar sentir a tua falta. Agora que lhe devolveram o coração, apercebe-se que os olhos se tornam mais meigos com a tua memoria; que o sorriso é aberto e doce. Agora que tem de novo o coração vivo no peito chorou a tua morte, sempre foste a sua Eurídice.
Ele não conseguiu evitar desculpar-te . Houve um dia em que se apercebeu que o amavas verdadeiramente, incondicionalmente. Houve um dia que ele compreendeu que o teu erro advinha disso, da tua profunda irracionalidade. E desculpou-se, ele era-te igualmente irracional.
Ele promete que vai tentar compor-te. Que se vai tentar compor a si próprio. Porque, quando lhe devolveram a consciência da emoção, ele não conseguiu evitar sentir a falta de si próprio. Da leveza com que vivia a sua existência, da facilidade com que alcançava o êxtase.
Ele promete que se vai esforçar por melhorar tudo. Se for demasiado tarde, é-lhe ironicamente indiferente. Ele amou-te, algures. E é certo que se desculpou, mas o Orfeu dele morreu com a tua Eurídice. É apenas a vibração estonteante de vencer o destino, é apenas a herança do êxtase que lhe deixaste.
Por favor, não chores. A vida é simplesmente isto. A oportunidade vivida uma e uma única vez. E, lá no fundo, ele está condenado a reviver a tua memoria indefinidamente, terás até ao fim um pedaço do coração dele .

Sunday, January 03, 2010

Fantasma da Opera

Ela teve medo, os ossos tremeram com o poder da tua voz. Porque ela não podia amar um monstro. Deslumbrar-se com um monstro. Deixar-se encantar pelo que fizeste contigo. Por isso trocou-te, ele era comum. Tão comum que não assusta. Tu, um monstro de tonalidade baixa grave, serias um verdadeiro perigo.
Mas não duvides que ela te amava. Pela junção da fantasia com o mistério, pela forma como ela se relaxava ao som da tua voz. Grave , bela. Pela forma como a tua arbitraria e metafórica fealdade a encantava. Simplesmente era fraca , débil, superficial. Comum, como ele. A representação patética do patético salvador. Um herói vazio e bondoso e carinhoso. A estabilidade oca em pessoa.
Ela teve medo, escolheste mal. Legitimo. A profundidade que carregas no coração trouxe-te o deslumbramento inconsciente pela beleza. Tornaste o superficial profundo por seres fundo e honesto contigo. Mas erraste, nela. Ela é comum. Teve medo de te amar. Quem é que escolhe o monstro, a desfiguração, a escuridão? Quem seria ela depois de te escolher?
Então ficou com ele. Alguém tão inútil que nem merece nome, que quase não tem rosto.
A tua intensidade e a tua filosofia, soletradas com a tua voz divinal, assustaram-na. Nunca ela alguma vez conseguir-se-ia igualar à tua beleza. Porque nunca foste monstro nenhum, ela sempre o soube. O monstro é ela.