Thursday, May 29, 2008

Saudades de Pessoa e de Portugal

Mar Pottuguês

Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos , quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram,
Quantas filhas ficaram por casar,
Para que fosses nosso, ó mar !

Valeu a pena ? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar alem do Bojador,
Tem de passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu
Mas nele é que espelhou o céu.

Fernando Pessoa in Mensagem

Saturday, May 24, 2008

Dor

A janela esta exactamente no sitio onde a deixei. Fechada, talvez um dia tenha coragem para abrir e encarar o mundo. Não consigo, sabes, é me quase impossível abri-la e voar. Nunca fui Ícaro, nunca desejei tornar-me nele.
Foco-me nas asas, sou engenheiro de alma. Apenas quero refortalece-las, modifica-las ate o Ícaro vencer o Sol . O meu sonho é a vitoria do voo dele, porque em momento algum ele conquista o sonho sem mim. E nunca eu me liberto do meu herói, do Messias.
Não, por favor, não me pormenorizes a morte dele, não relates o seu corpo desfeito em pedaços. Dói-me como se tivesse sido o meu, dói-me porque foi o meu..E não me obrigues a ocupar o lugar do Ícaro , o meu sonho é de material diferente, é de tempo diferente.
A janela esta aqui, ao meu lado, como sempre, como a morte. Não a abras, tem pena de mim, deixa-me cumprir o luto e fingir que as lágrimas escorrem. Somando as quedas, retiram-se lágrimas à alma. Tem compaixão e deixa-me enterrar o Ícaro, outro Ícaro, outro...
Os sonhos morrem. Consecutivamente. A janela está trancada e começa a ficar invisível. Um dia vou passar por ela e simplesmente não a ver. Um dia fecho os sentidos ao mundo e espero que alguém os desperte..
Um dia o Ícaro vai deixar de morrer, ou porque deixa de existir ou porque vence o Sol.

WinGs (L.C.)

Tuesday, May 20, 2008

Orfeu Renascido

Julgo que costumava ser uma espécie de Orfeu. Não um Orfeu completo, não um dos verdadeiros. E também não era uma imitação barata, seja como for, era um reflexo de Orfeu, o primeiro.
Perdi-o em mim, algures no meio do meu medo de infertilidade emocional ou mental. Perdi-o e talvez no mundo, como se perde uma sombra, como se perde uma alma. Talvez nunca mais o encontre. Talvez nunca mais tenha habilidade para o visualizar.
Porém, quando a escuridão incide com um certo ângulo no espelho que não é plano, vejo um reflexo nítido de uma silhueta desfocada. Encontro-o em mim porque ele existe sempre que os meus nervos humanos o chamarem.
Julgo que costumava ser uma espécie de Orfeu, talvez seja, hoje um novo Orfeu já velho e renovado. Tão renascido das cinzas que nunca conheceu Eurídice e já não chora por ela, já não enfrenta o inferno e o deus terrível por ela. O amor já não lhe faz falta. Mas ainda é Orfeu porque, quando o vejo no espelho, ele ainda tem a sua lira e nos seus sonhos profundos vê Euridice.
Perdi o Orfeu que tinha em mim mas talvez seja só falta de esperança.

Wings C.


Monday, May 19, 2008

Amor

Passou distraidamente a mão pelo caderno, folheou-o. Estava tão distraído, tão longe dali, daquele momento, daquelas pessoas. Da secretaria e do Universo. Esta no lado do Arco Íris sem pote de Ouro mas, mesmo assim, estava longe e num sitio confortável.
Penteou o cabelo escuro e olhou-se ao espelho. Cerrou o maxilar e o rosto era duro, de traços fundos, quase como linhas. Mas os olhos, os olhos... Ele notou que tinham um brilho especial, que estava distante, no lugar do arco-íris de uma só cor.
Amava. Intensamente. Qualquer coisa menos uma pessoa. Tudo excepto algo que remetesse para um sentimento socialmente real. Amava intensamente a vida e a musica, o mar e a sua violência. Amava o mundo e amava a sua solidão. E a sua cicatriz social.

Passou distraidamente a mão pelo caderno, folheou-o. Estava perdida, enclausurada nos seus pensamentos pelos outros, os que a temem e a odeiam. Mas que todos os prisioneiros fossem como ela, trancados numa espécie de paraíso falso ( felicidade não e ignorância e um ignorante não tem alcance mental para perceber que infelicidade e a felicidade são a mesma coisa. Alternam simplesmente de fases e se não coexistirem não existem)
Fechou o livro e olhou-se ao espelho. O rosto era cansado, marcado pela persistência de ser ela própria todos os dias. E viu a cicatriz nascer, a flor de lis. Observa - se e observava o crescimento da cicatriz todos os dias, talvez para contabilizar os dias e ver o crescimento da sua condenação. Ao menos, não era inocente. Ela era um crime no mundo e se não morreu ate agora foi porque teve a agilidade de uma pantera ,negra como a noite, e a força de um castelo de ferro. Se ainda guarda e defende no peito o ideal é porque acredita. E ama a vida e a sua própria existência.

Pararam os dois em frente do passeio. Ele reparou que ela ouvia a musica dele, a musica que era dele, que ele guardava numa gaveta especial no coração. Trancada à chave.
Ela viu que ele tinha o mesmo ar dela, que tinha o mesmo passo leve e o mesmo olhar em contraste com o mundo – os olhos eram divinos, procuravam a perfeição azul, o rosto, cicatrizado.
Falaram-se, como se conhecessem. Nenhum deles tinha, em momento algum mais brilhante, falado tanto e tão descontraidamente sobre si. E nenhum deles se esqueceu da perturbação que causaram um ao outro.
Os dois partilharam a solidão. Foram , calmamente, um com o outro beber café, não foram juntos. As solidões deram, um dia mais tarde, a mão.

WinGs C.

Friday, May 09, 2008

Recurso a Eugenio de Andrade

Música, levai-me:

Onde estão as barcas?
Onde são as ilhas?

Eugénio de Andrade

Thursday, May 08, 2008

Troca

Não posso. Ele repete, sabes que não posso. Mesmo que quisesse, que o desejasse muito, com toda a força de uma árvore enorme, não posso. Ele fala, mas o receptor finge-se surdo, a resposta não é a mais conveniente. O outro lamenta e com pouca voz repete, estende o braço à procura de um abraço. Não posso, desculpa, não posso. Mas o mundo é um lugar cruel e cada um vive como pode, a resposta era a outra, o abraço acontece num mundo paralelo. O receptor não tem tempo para desculpas.
Não posso trocar de coração contigo, não vale de nada, é igual. Ouve-me, é igual, o meu e o teu, é igual. Mas o outro vira as costas. Permanece quieto, mas o desprezo é tão evidente como a lua cheia num céu preto, vê - se claramente. Sim, é verdade, sou mais forte que tu, travei mais batalhas que tu, mas o coração é igual ao teu. De cada vez que assassinei a palavra honesta ele sofreu; de cada vez que enganei para que não me vissem a flor-de-lis no ombro, ele apertou – se - me no peito; de cada vez que vi o mar ele tornou-me o corpo mais leve. Não é por ser meu, é porque é frágil, mais que o teu, quando morrer morre de vez, o teu resiste mais. Mas para o outro eram desculpas, um herói nunca deixa de ser herói e os heróis são pessoas deveras irritantes, com tanta lealdade e honestidade. O mundo não é assim e nunca será, o que no fim ficou melhor classificado foi o mais esperto, o mais capaz de ferir conscientemente sem remorsos. Ele, o receptor, precisa do coração de um herói para aguentar a dureza da vida.
Eu troquei de coração um dia, e perdi parte dele assim. O outro insiste em continuar, ou porque é um crente no Homem ou porque deseja realmente ajudar um amigo (não pediu ao monstro para vir para a luz ainda). Perdi-o assim e a minha alma foi corroída, foi devorada. Foi uma dor existencial geologicamente grande, traí-me a mim próprio. Não posso fazer outra vez, se troco de coração contigo, quem chora por mim as minhas lágrimas? Quem me faz sentir humano? Quem me distingue do animal? Não posso, mesmo que quisesse não posso. Sou teu amigo, mas não tenho poder para fazer tal coisa...
Mas ao outro, o amigo receptor, não interessa já. A dor dele provem do coração e o outro é um herói, tem um coração duro. Está a ser egoísta: não vês que estou em sofrimento? Que também tenho feridas inúmeras? Recusas a ajuda. Sobreviverei sozinho, sem o teu coração de herói. Não és meu amigo. Estende –lhe a mão para a despedida derradeira e final. Não hesita, o coração é duro como a pedra.
O outro , repara no homem que se despede arrogantemente, em vez de apenas olhar e a tristeza ajeita-se no coração.

WinGs C.