Tuesday, June 25, 2013

A carta - um pequeno conto (Parte II)


Abriu o jornal despreocupadamente. Quando uma presença feminina entrou na sala e se sentou calmamente no seu colo, sorriu como se todo o mundo não importasse ( porque, de facto, não importava).  Estava perfeitamente confortável , existencialmente cómodo na tranquilidade do excesso. 
Os olhos dela pousaram na notícia do jornal. O rosto contraído num choque momentâneo, na consciência de um qualquer horror que lhe trespassou pela mente. Os olhos dele seguiram os dela e um esgar de profundo terror tomou-lhe todo o ser. O corpo ficou preso ao vazio.
-Conheceste-a?
- Vagamente, apenas. – Mentiu, ele.
Tudo o resto ele não se lembra, perdeu qualquer consciência, tudo era um turbilhão confuso que o engolia enquanto nada se mexia. A imobilidade prendia-o. Tudo estava estático.  Ficou sentado durante muito tempo porque o tempo colapsou. Ouviu o telefone, reconheceu a voz. Ouviu o choro compulsivo. Ouviu bem as palavras – a culpa era dele, toda dele. Ele devia saber que a culpa era toda dele. Ela jamais conduziria com aquela percentagem de álcool no sangue.
Ah! Ele sabia. Ela era uma pessoa bastante aborrecida no dia-a-dia, sempre dentro das normas, movia-se sempre de forma perfeita. A única desmedida era o sorriso, só quando sorria é que parecia libertar-se da perfeição austera que se encontra no seguimento das regras cegamente.
Era sua culpa? Era mesmo?
O rosto contraiu-se num horror profundo e, parte dessa expressão, acompanhou-o, tal qual uma sombra negra que consome a luz, até ao fim. O sorriso dele foi indefinidamente, um sorriso fantasma, sem tempo definido.

Ela olhava-o ansiosamente. A expressão do rosto dele era de profundo choque.  Os olhos estavam preso às folhas de papel. Quando acabou, levantou-se e sentou-se a seu lado.
- Ainda não esta acabado! Falta algumas coisas sabes, reformular. Bem tu sabes. – Ela esperava expectante a opinião dele. Parecia que tinha visto um fantasma.
- É assim que acaba?
-É.
-Temos uma vida assim triste? – Perguntou.
-Não…-  Considerou aquela pergunta bastante estranha. – Porquê?
- É um final, bem. Triste. E duro. – Ele alivou o rosto. – Então, não reflecte a nossa vida?
Ela riu muito alto.
- Eu escrevo histórias. É como ganho a vida. – Ele era tão intencionalmente ingénuo. Recusava-se sempre a aceitar que o mundo era, por vezes, um lugar cruel.
- Ele, a personagem masculina. É mau, de má índole?
- Não. É uma pessoa desfasada do mundo, habituou-se a sobreviver por conta própria, manteve um mundo privado. Na sua vida sempre fora das normas, habituou-se, bem, a encontrar um espaço dele. – Parou e reflectiu. – Não, as intenções dele são honestamente boas, mas não se sincronizam com a realidade. E o resultado é catastrófico.
- E ela?
-Que tem ela?
- Porque é que morre? Não precisava de morrer. – Parou. –Ou precisava?
-Ela é uma pessoa comum.  As pessoas comuns não questionam o que é inquestionável porque procuram uma vida sem dificuldades, sem grandes exigências. As pessoas comuns são comuns porque seguem um modelo e é bem mais fácil seguir um do que criar um. A vida está no obstáculo, no excesso do limite para se saber qual é , exactamente, o limite.
Parou. Retomou, depois o pensamento.
- Só queria que as pessoas tomassem consciência que a morte é o reflexo da vida. E há vários tipos de morte – a dela é definitiva porque é metafórica. Na verdade, ela raramente viveu. Viver tem de valer a pena, tem de ser merecido, tens de equilibrar o dever e o querer, entrelaça-los e encontrar aí o teu ser. Em ti, não no mundo. Tens de defender a tua vida. A morte é sempre, misteriosamente, a melhor maneira de abraçar a vida.
Ele ponderou o que ela disse.
- Não gostei.
Ela sorriu. – Eu sei.
- Prefiro desenhar prédios.
Ela riu muito alto.

 – Eu sei.

A carta - um pequeno conto (Parte I)

“ Acordei com esta sensação  estranha de quem perdeu um sonho enquanto o sonhava e, no desenrolar desse paradoxo, o imenso sol que se fazia brilhar no espaço, não conseguia libertar a palavra anónima que estava enclausurada na garganta.  Precisava de saber o nome para me libertar dela.
Foi quando me lembrei de ti, naqueles dias de sol equilibrados termicamente. Equilibrados existencialmente.  Costumavas sorrir e todo o mundo se tornava suportável. Eu sei – sei bastante bem – foi já há muito tempo, há anos, literalmente, até. Depois de tanto tempo só agora é que, de facto, sei qual é a cor da tua ausência. Acredita, não é mais estranho – ou perturbador – para ti do que é para mim. Mas há uma verdade lógica  que se esconde neste aparente não sentido.
Por mais que , para ti, o meu comportamento seja sempre o comportamento de um egoísta arrogante e egocêntrico, senhor da sua própria vontade alheio às vontades circundantes, só não te quis oferecer o mundo porque não o tinha e o amor nunca foi uma promessa vazia. Tem sempre, a meu ver, uma fracção de honestidade cristalina , nunca pode ser uma palavra inócua.
Porque é que considerei por bem dizer-te, não sei exactamente.  Talvez a culpa e o arrependimento, quando chegam à consciência, se tornem em factos difíceis de sacudir da pele.
Quando reflecti, ponderei se não se relaciona sobre a minha independência ( arrogante, ainda me lembro da tua opinião) e da minha insistência em querer segurar a miséria do mundo. Queria torna-lo num lugar mais suportável, melhor, mais equilibrado. A ideia dominava todo o meu ser, ofereci o sangue, em instância ultima, para que a utopia se movesse um milímetro para mais perto da realidade.  Anulava-me , sabes, num momento último. Procurava construir um mundo que, no limiar da sua perfeição, eu não podia fazer parte. É este o tamanho do meu ideal, o sacrifício não me custa, é honesto e é verdadeiro. É a minha intenção.
Apercebi-me, porém, hoje, que falhei em tornar o teu mundo suportável. Tenho consciência absoluta que não me esforcei o suficiente e, para ti, não me esforcei de todo, é uma mesma coisa.  Lamento, profunda e honestamente, ter anulado o teu sorriso ainda que tenha sido por breves instantes, apenas.  Tive a minha legitimidade, é certo, as tuas acusações à minha pessoa passeavam-se entre o insulto grave , uma tentativa de me enquadrar num mundo que não era o meu e o absurdo que fica quando segues normas cegamente.  Mas , sinceramente, pouco me importa que erros cometeste : perdeste o teu sorriso sob o meu toque enquanto eu perdia qualquer coisa que já tinha perdido antes. Quando tomaste consciência da tua perda, a minha era já um fantasma disperso. Não me fez grande diferença porque nunca gostei de bússolas, estar perdido é a minha forma de orientação.
Não! Não julgues que procuro que me desculpes e, muito menos, que me perdoes. Os teus erros e os meus erros são equivalentes, às tantas, o amor apenas dissipou-se e , a seguir, cessou.  Queria apenas pronunciar o indizível para que nenhum som oblíquo nascesse desse espaço-tempo paralelo que é o “se”. Não gosto do “se” – é uma ilusão que entrelaças com a realidade sem qualquer hipótese de se prolongar. Sabes bem qual a minha posição em relação aos teus “ses”.
 Queria apenas pronunciar as palavras certas, cada uma no seu lugar – estas são tuas. Apercebi-me , simplesmente, que nunca me tinha despedido de ti. Por isso – adeus. Sem nenhum se.”

Puxou a tampa do portátil para baixo e fechou os olhos.  Há quanto tempo não lembrava  esta sensação de quente e frio simultâneos e dispersos que ele deixava como meio-ambiente. Era o seu perfume esta instabilidade em constante vertigem.
Por baixo da carta que lhe enviara, estavam duas frases de Pablo Neruda.  Ele e Neruda!  Nunca compreendeu o que é Neruda tinha de tão especial para ele – um poeta, há tantos! Nunca compreendeu os poemas de Neruda. Odiava profundamente Neruda, odiava-o agora ainda mais. Só o nome – NE-RÚ-DA – dava-lhe náuseas.  Já ele, ah! Ele compreendia Neruda , o ser dele era o poema. Oh, que contradição se instalou no seu peito!
Abriu o portátil, sem reler o e-mail, clicou no “responder”. Nenhuma palavra lhe saiu , o que fazia sentido, ele é que de vez em quando, publicava certos contos. Nunca entendeu. Não era o trabalho dele, era um hobbie. Um hobbie que lhe importava mais que o trabalho. Porque fazia ele isto?
Levantou-se para procurar refugio na garrafa de vodka.  Porque a tinha deixado. Porquê, mas porquê? Era tão – feliz! Que lhe iria dizer? Levou a garrafa aos lábios. Passado algum tempo, ganhou a coragem para lhe fazer a pergunta silenciosa que lhe morava debaixo da pele. A resposta dele foi relativamente rápida. Um Não seco seguido de uma série de explicações. Ele e a persistência irritante de que , se se compreender as razões, a dor atenua. A dela não atenuava em nada, era irracional, era inconsciente. Mas leu à mesma, numa esperança mórbida.
Não porque não tinha resultado. Não porque não a amava, amou-a ( a dureza da precisão de um passado que não se alongou no presente). Não porque ele gostava de Neruda ( esta, esta ela percebia no seu não-entendimento, era um porque que sintetizava tudo). Não porque amava outra. E era feliz.  Acordou com um nome anónimo na garganta, queria pronuncia-lo para se libertar. Era tudo.
Ele e a sua vontade de explicar tudo, de curar a dor através da brutalidade da consciência de que ela existe e que não vale a pena fugir. Ele e a insistência em aniquilar e extinguir todos os fantasmas. Contudo, enquanto o peito contraia, ela apercebia-se que a morte do fantasma dele, fez o dela renascer. A rejeição, a sensação de não chegar, de não ser suficiente, ter que enfrentar o mundo no dia a seguir. A ausência dele, ah amava-o ainda, não sabia não o amar. ( Amava-o, mesmo?). Lembrou-se do rosto dele, tão belo e tão distraído, todo o ser dele, composto e desajeitado, sempre alheado do resto da realidade, estando sempre consciente do que o circundava. De tudo, o que mais lhe doía, era a ligeira doçura presente nas entrelinhas dele. Ela era uma boa memoria que já nada lhe dizia. Precisava de respirar, olhou  a garrafa de vodka, já vazia. Ligou a uma amiga. Não foi suficiente.Precisava de respirar. O perfume do meio-ambiente era tóxico.


Wednesday, June 19, 2013

Porque

É uma leve injustiça cujo trago já conheces há tanto tempo que te não rouba qualquer bem-estar. Há uma vaidade existencial equilibrada que te vai orientando, nunca teus olhos procuram o que se esconde debaixo da terra, sabes bem que teu coração pertence ao mar. É uma leve injustiça, sorris, já há habito – e já foi pior. Uma pequena represália do tempo que é teu contemporâneo, é uma pequena injustiça, à qual sobrevives, que outra hipótese tens? Teus ouvidos seguem docemente o azul, esperas o juízo final, tens contas nenhumas a ajustar, foste homem enquanto o soubeste ser, a forma como aceitas o castigo consiste na não-punição.

E que importa o mundo e as suas mesquinhices e os seus assuntos aborrecidos? Teu coração pertence ao mar, teus ouvidos seguem o azul, teu pensamento procura a disciplina para que teu ser possa gozar com fartura não ser mais corpo opaco ao sabor de uma corrente qualquer.  Fechas os olhos e vês melhor, apagas a luz para que a verdadeira luz irrompa do vazio, sentes-te no mundo , garantes um lugar à força de existires tranquilamente contigo. Até sabes porque é complicada a tua razão para com o mundo, até sabes quais são as queixas, mas que importa? Sorris e reafirmas –  és feliz enquanto o mar te guardar o coração com ternura, enquanto o azul te iluminar o caminho. Tudo resto é irrelevante – é uma grande justiça que trazes contigo, quando manténs uma honesta espinha que jamais se dobra. Não está à venda o ser que é teu – e isso é justiça.

“Porque tu vais de mãos dadas com os perigos, e eles vão à sombra dos abirgos, Porque eles calculam mas tu não.”

Inspirado em Porque de Sophia de Mello Breyner.

Sunday, June 16, 2013

O nascimento da Sonoridade Azul

Há algo na tua voz que me faz sonhar um mundo melhor, onde a tua sonoridade não seja tão triste (porque não tem de ser tão triste). Tive, claro, as minhas guerras com o mundo, as desilusões de uma ideia que não conseguiu desabrochar. Mas mantive, acima de tudo, uma tensão comigo, entre o queria ser, o que era e o que desejava ser, o mundo, o mundo funcionava apenas como reflexo do meu próprio espírito. A guerra contra o mundo sempre foi uma batalha dentro de mim. Sobrevivi, como vês,  porque fechei os olhos para ouvir a minha própria voz, esquecida no turbilhão do ruído do mundo. Fechei os olhos para ver melhor o nascimento da cor e, encontrei nesse instante, o som de onde brotou todo o mundo. Há algo na tua voz que me lembra o meu ser, que ao defender uma perspectiva vitalista, se esqueceu do drama inerente a uma existência vital. É a tristeza da tua voz que me faz querer dar-te o Belo, porque é por sua mão que a realidade ganha uma nova vida, destinada a ser vivida por  um novo tempo.

Tiveste, claro, as tuas guerras, as tuas lutas contra um mundo que não te guarda lugar. Nada guarda lugar nada, nada dá lugar a nada, tudo é efémero, tudo anseia por algo que não sabe bem o que é.  E, há algo na tua voz, que me relembra o retorno ao uno, ao inicio, ao nascimento do tudo que é um pequeno e minúsculo detalhe. E isso, isso faz-me sonhar um mundo melhor onde uma onda de azul te inunde os olhos, demonstrando-te assim, que há sempre tempo se o tempo existir em ti. Como sempre existiu em mim, não sou um díspar fragmento mundano (e por isso, sou feliz).