Monday, July 25, 2016

Costumava invejar a triste sorte de Orfeu

Costumava invejar a triste sorte de Orfeu,
Que amou e foi amado,
Que foi herói e foi fracasso,
Sem inveja nenhuma. Mas havia em Orfeu,
Uma moral para aprender e
Momentos houve que julguei
Se ouvisse, de perto, a voz de Orfeu
Então aprenderia como ele
A fazer a lira chorar.

Mas eis que eu fui amado
Mas não amei
E fui herói
Mas não fracassei
A minha lira nunca chorava
Porque não tinha a corda triste.

Costumava invejar a triste sorte de Orfeu,
O som da lira é o som dos homens
O sucesso tem o seu quê de trágico
E eu não sofri para fazer a lira ter esse som
Melodioso
De quem ri sem lembrar porquê.

Sempre invejei a triste sorte de Orfeu,
Sem inveja nenhuma,
A eficácia tem o seu quê de trágica.


Thursday, July 14, 2016

Liberdade

O dia foi perfeitamente normal. Agradável, até. Quase que me dói gostar do hábito. Quase que me envergonho de me ter tornado neste ser, que tem um trabalho. E que, de certa maneira, cresceu e que já não está contra o mundo. Não é preciso haver sintonia e muito menos harmonia, apenas, talvez (quem sabe?) apenas aceitação. De que eu sou como sou enquanto a vida é como é, tudo é como é… E penso, como me posso habituar aquilo que tanto odiava? Como me posso habituar aquilo de que tanto fugi?
Talvez fosse preciso tempo. Talvez tivesse de ler, uma outra vez, o Principezinho, e mais uma, e mais uma…
Mas ligo a televisão. E houve um atentado. Mais mortos do que o balanço inicial. Mais crianças cadáveres do que os nossos corações desejavam memorizar. E não conheço ninguém. Estou bem seguro, aqui, em minha casa. Nunca me tinha apercebido disso. Mas tantos mortos, que nem conheço… mas tantos mortos, tão inocentes. Tragédia, é certo. Muito para além de justiça ou injustiça.

E ligo a televisão e houve um atentado. Ouço a tua voz e sei que todo o silêncio está quebrado embora não ouça som algum. E ligo a televisão e houve um atentado. 

Wednesday, May 11, 2016

O último Ícaro

Envelheci com o teu rosto jovem na memória,
A ansiedade de que eu finalmente crescesse e deixasse
De ser dédalo, consolador de ícaros,
Restaurador de asas.
Envelheci com o teu rosto e a tua expressão
A de quem envelhece numa espera intermitente
Própria de quem espera indefinidamente.

Mas eu era Dédalo, pai de todos os ícaros,
Cabia lhes rasgarem o céu e tornarem os sonhos desejáveis
De novo.
Cabia lhes cruzarem o sol e dizer que estar vivo
é isso mesmo
Cabia lhes isso tudo, meu amor,
Mas eu era Dédalo, pai de todos os sonhos,
Tinha de lhes cozer as asas como quem cose uma alma
E limpar lhes as feridas como quem dá animo a um coração partido
Eu era Dédalo, pai de todos os ícaros.

E envelheci com o teu rosto na minha memória
De quem espera uma espera infinita
Porque eu nunca cresci como nunca deixei de ser Dédalo,
E só no final,
Meu amor, só no final, na tua expressão de quem espera
Já sem saber o que espera é que entendi,

Eu era o último Ícaro e o último Dédalo.