Uma certa tranquilidade já se entranhou de tal modo na pele
dele que ouve o silêncio profundo da noite em cada ruído clandestino. Ligou o rádio como quem se prepara para
abraçar uma qualquer estranheza da existência e a música invadiu-lhe o ouvido. Havias
de gostar dessa música, ou secalhar gostavas , ele é que já não se lembra,
perdeu-te no instante preciso em que seguiu um outro trilho. E nada ficou senão
a memória de um quotidiano que perdeu até o sentido de não ter sentido.
Lembrou aquela noite como se guardasse uma antiga saudade de
querer ser um outro eu, se foi ele que se sentou, contigo, naquelas escadas
alheias, é irrelavante porque já o não é há demasiado tempo. Toda a juventude,
toda a rebeldia, toda a ilusória liberdade gasta num esgar temporal ; todo o
teu ser gasto naquela noite, o apogeu do amor coincidiu com o declínio. Ele
sabe, pergunta-se se o sabes também, tentaram os dois viver só daquela noite,
repeti-la, orientar a vida nessa frágil direcção. Tinham um atraso que não conseguiram
diminuir e a referência, estava ela propria, consumida pela ansiedade de se
sincronizar no tempo certo.
Havias de gostar desta música, consegue ouvi-la com nítida clareza na memória
que tem daquela noite; se houve alturas em que te amou com toda a força da
existência, foi aí. O mundo parecia
poder tornar-se perfeito porque ele estava profundamente desfasado de tudo que
te descontextualizasse.
Havias de gostar desta música, pertence a uma geração que se
colapsou no mesmo ponto que surgiu. Ao expelir os demónios, perdeu-se com eles.E
ele pertencia à geração seguinte. Deu ao silêncio uma cor musical mas gastou o
amor naquela mesma noite e acordou na manhã seguinte do tempo por vir.
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