Friday, June 12, 2015

Mistério

No final de cada dia, perguntavam-me como é que eu gastava a minha vida. Dizia-lhes sempre a verdade, que uma mentira consciente é uma ilusão triste consentida. No meu mais profundo ateísmo, dizia-lhes que a vida não há-de ser só isto, mais do que perguntar se Deus existe, valeria a pena perguntar porque é que haverá de existir. Viver a vida pela vida, é difícil, sabes, e concorre a não ter propósito e é, precisamente aí, que reside todo o mistério, no porquê. Todos os teus heróis, todos os que ficaram conhecidos como diabos vestidos de homem, tornaram-se perigosos pelo seu propósito. Por isso, a vida há de ter sempre o seu objectivo e isso é que é misterioso. Mesmo sem Deus.
Mas nunca os consegui convencer, de nada. Mostravam-se sempre curiosos, talvez a espera de uma receita, talvez a espera de ocupar as horas num momento inoportuno. Mas também, que importa? A verdade é que tenho a minha própria filosofia de vida, que não é uma moral de vida, não é alheia e não diz respeito a mais ninguém.
E, no final do dia, acabava sempre por sentir a tua falta. Tinhas um propósito diferente, gosto de pensar que tinhas um objectivo diferente. A tua sobrevivência era visível no teu rosto como se fosse uma tatuagem, aprendi contigo o encanto de subsistir e sobreviver à vida, ser maior que eu porque haveria de ser maior que a desgraça. A miséria pode ser contingente se a vida tiver algum propósito, há essa esperança, uma janela aberta pode ser o começo de uma nova viagem.

No final de cada dia, perguntavam-me como é que vivia a minha vida. Como lhes hei de explicar? Sempre me fascinou o contraste. E entre as normais e discretas regras do dia-a-dia, eis que eu cruzava o tempo e sentia-me perfeitamente eu. Era esse o meu encanto, não ser apenas uma coisa, mas também o seu contraste. E, por isso, sinto-te a falta sem a sentir, aprendi a aprender. Então, esse é o meu encanto, da sobrevivência que não atinge o limite do desumano. Quando me perguntavam como gastava a minha vida, dizia-lhes sempre o mesmo: a viver. E elas não faziam a mínima ideia do que eu queria dizer com isso, porque era só conversa de ocasião e nunca pararam para ver o sol a por-se no horizonte marítimo. 

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