O dia é soalheiro. Incrivelmente iluminado. Mas há um
nevoeiro escondido algures, a alegria das pessoas num dia de Verão aberto soa
como uma nota límpida desafinada. Há um nevoeiro escondido aí algures, não o
ouves? Talvez já tenhas nascido nessa surdez em surdina que ouve e ouve e ouve
mas todos os sons te soam iguais enquanto os distingues perfeitamente. O
brilhantismo da ausência de beleza nos olhos.
O dia é soalheiro. Incrivelmente iluminado. Mas estou aqui,
sozinho, e penso. Mas não sei em quê, tudo é difuso de forma perfeitamente
ordenado. O princípio, o meio. Claro, o fim. Trágico, dramático. Não, não para
mim. Expectável, preparado em cada instante a seguir ao clímax. Há que
respeitar a música, sempre respeitei a melodia de minha alma, talvez não tenhas
tu respeitado a sincronia entre essa música, a única música, e o tempo. O seu
tempo, o teu tempo, o nosso tempo (mas talvez não o meu tempo). Que importa?
Penso. Não importa. Mas recordo, recordo, o teu último olhar. Tomara eu ter
tido palavras para te dizer. O teu olhar pedia-me esse som, esse maravilhoso
som, o da voz humana. A comunicação. Gostava de ter dito que a justiça é uma
coisa humana, não existe assim, livremente no mundo. E nem sempre tem esse som,
da recompensa. Houve justiça para mim – fazer o que me incumbido, cumprir o
dever, seguir o meu propósito. O dia é soalheiro mas há uma sombra de nevoeiro
que é preciso uma pele específica para captar, não é? Sei isso porque fui eu
que pus a mochila às costas para rodar o mundo na palma da mão. Talvez tenha
uma mancha de neblina nos olhos.
O dia é soalheiro. Estupidamente iluminado. Aqui, sozinho,
revejo o teu rosto. E contorce-se a alma despreocupada num coração intacto em
toda a sua imobilidade. Há Sol por todo o lado – mas eu gosto da melodia do
piano num dia de chuva. Que importa? Já chegou ao fim.
Que importa? Não penso. Há música em todo o lado, em cada
poro, em cada festa, em cada instante de silêncio, em cada sorriso e em cada
bocejo. Só não havia música em ti. O dia é soalheiro, incrivelmente soalheiro.
E, eis que, finalmente, a música termina. E a tua memória
ressoa na última nota que atrasa o derradeiro final.
(Inspirado no conto Música de Vladimir Nabokov)
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