Monday, May 19, 2008

Amor

Passou distraidamente a mão pelo caderno, folheou-o. Estava tão distraído, tão longe dali, daquele momento, daquelas pessoas. Da secretaria e do Universo. Esta no lado do Arco Íris sem pote de Ouro mas, mesmo assim, estava longe e num sitio confortável.
Penteou o cabelo escuro e olhou-se ao espelho. Cerrou o maxilar e o rosto era duro, de traços fundos, quase como linhas. Mas os olhos, os olhos... Ele notou que tinham um brilho especial, que estava distante, no lugar do arco-íris de uma só cor.
Amava. Intensamente. Qualquer coisa menos uma pessoa. Tudo excepto algo que remetesse para um sentimento socialmente real. Amava intensamente a vida e a musica, o mar e a sua violência. Amava o mundo e amava a sua solidão. E a sua cicatriz social.

Passou distraidamente a mão pelo caderno, folheou-o. Estava perdida, enclausurada nos seus pensamentos pelos outros, os que a temem e a odeiam. Mas que todos os prisioneiros fossem como ela, trancados numa espécie de paraíso falso ( felicidade não e ignorância e um ignorante não tem alcance mental para perceber que infelicidade e a felicidade são a mesma coisa. Alternam simplesmente de fases e se não coexistirem não existem)
Fechou o livro e olhou-se ao espelho. O rosto era cansado, marcado pela persistência de ser ela própria todos os dias. E viu a cicatriz nascer, a flor de lis. Observa - se e observava o crescimento da cicatriz todos os dias, talvez para contabilizar os dias e ver o crescimento da sua condenação. Ao menos, não era inocente. Ela era um crime no mundo e se não morreu ate agora foi porque teve a agilidade de uma pantera ,negra como a noite, e a força de um castelo de ferro. Se ainda guarda e defende no peito o ideal é porque acredita. E ama a vida e a sua própria existência.

Pararam os dois em frente do passeio. Ele reparou que ela ouvia a musica dele, a musica que era dele, que ele guardava numa gaveta especial no coração. Trancada à chave.
Ela viu que ele tinha o mesmo ar dela, que tinha o mesmo passo leve e o mesmo olhar em contraste com o mundo – os olhos eram divinos, procuravam a perfeição azul, o rosto, cicatrizado.
Falaram-se, como se conhecessem. Nenhum deles tinha, em momento algum mais brilhante, falado tanto e tão descontraidamente sobre si. E nenhum deles se esqueceu da perturbação que causaram um ao outro.
Os dois partilharam a solidão. Foram , calmamente, um com o outro beber café, não foram juntos. As solidões deram, um dia mais tarde, a mão.

WinGs C.

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